Eu ainda estava na fase de pesquisas para escrever a obra “Perdão – A Revolução que Falta” quando percebi que, invariavelmente, teria de responder à pergunta: afinal, é possível e preciso perdoar a tudo e a todos – inclusive aos que cometeram crimes?
E quanto aos políticos corruptos que saquearam nosso País?
E quanto aos estupradores?
E quanto aos torturadores?
E quanto aos racistas, e/ou homofóbicos, e/ou misóginos – em suma, e quanto aos porta-bandeiras dos preconceitos e das violências?
Bem, a resposta é SIM: nós temos, sim, de perdoá-los. Não por uma razão espiritual ou religiosa. Minha argumentação nada tem a ver com a moral e os bons costumes. Na verdade, eu defendo que devemos perdoá-los porque, bem, o não-perdão só afeta, prejudica e atrapalha a mim mesma; se afeta, prejudica ou atrapalha ao meu algoz, eu simplesmente não tenho como inferir. Portanto, perdoar é uma questão de inteligência porque beneficia a MIM, não ao outro.
Acho importante trazer este assunto à tona neste momento tão difícil para a nossa sociedade. Para começar, estamos em meio a um contexto político que dividiu o Brasil e nos fez verdadeiros donos da verdade, incapazes de dialogar ou mesmo de ouvir alguém que pense diferente.
Além disso, acompanhamos o que parece ser uma onda recorrente de violência contra os grupos historicamente e socialmente mais fracos e/ou oprimidos: mulheres que apanham de seus maridos (e engrossam os casos de feminicídio); crianças que são vítimas de abusos; idosos abandonados e extorquidos pela própria família.
Diante de tudo isso, nós, brasileiros, estamos com raiva, muita raiva! E queremos que alguém pague, quer dizer, alguém precisa ser responsabilizado e punido por tudo de ruim que estamos vivendo. Em suma, esses acontecimentos todos têm mexido diretamente com nosso senso de justiça – e, como contei no artigo “Dar o troco na mesma moeda: vale a pena?” –, isso faz com que subamos na nossa própria pedra da justiça para ir à desforra.
É aí, justamente aí, que nos comprometemos com o não-perdão e nos deixamos cegar por aquilo que acreditamos ser certo. Mas como é que podemos estar tão certos de que estamos certos?
O que não está na lei
afinal, é possível e preciso perdoar a tudo e a todos – inclusive aos que cometeram crimes?
Afinal, é possível e preciso perdoar a tudo e a todos – inclusive aos que cometeram crimes?
Não dá para falar de perdão sem falar de justiça. Não da justiça legal, jurídica, a que se pratica nos tribunais. Essa cumpre um papel social importante, que nos dá parâmetros e limites (ou, pelo menos, assim deveria ser).
Estou falando do senso de justiça que há dentro de todos nós. Aquele sob o qual fomos criados, aquele que nos guia desde a infância, aquele que nos faz agir sempre que nos vemos diante de uma situação que contrarie nossos valores… Sabe do que eu estou falando?
Todos nós, seres humanos, trazemos, da nossa casa de infância, uma série de crenças que nos servem de parâmetro até a vida adulta e, por isso, direcionam nosso comportamento. E muito provavelmente aprendemos, lá atrás naquela época, que esse jeitão de pensar e de ser é que era o correto; possíveis variações ou alternativas deveriam então ser ignoradas e, se possível, execradas.
Isso me faz lembrar da discussão entre duas alunas do Processo Hoffman. Por obra do destino, tinham perfis muito similares: ambas eram casadas, mães de três filhos e advogadas. A primeira, no entanto, havia decidido abrir mão da carreira para cuidar da família; sentia falta do trabalho, mas acreditava que, assim, contribuía para um mundo melhor. A segunda havia trabalhado arduamente até assumir um cargo importante na Justiça Federal, o que lhe consumia muito tempo; sentia falta da família, mas acreditava que, assim, contribuía para um mundo melhor.
Você consegue imaginar o que aconteceu quando essas duas ficaram frente a frente?
Pois é, foi uma discussão sem fim!!! Tudo porque ambas tinham certeza de que estavam certas. Precisaram percorrer todo o treinamento para compreender, ao final, a mesmíssima coisa que estou lhe dizendo agora: as definições de “certo” e “errado” variam de pessoa para pessoa. Consequentemente, o senso de justiça também. Mais que isso, se eu estou “certa”, isso não significa necessariamente que você está “errada”.
Resumindo, evidentemente, é nosso papel reportar à justiça e aos órgãos responsáveis todo e qualquer comportamento ou crença que infrinja as leis. Vou reiterar:
Racismo é crime. Homofobia é crime. Violência contra mulheres, contra crianças e contra idosos também é crime. Portanto, não são opiniões ou expressões aceitáveis; devem ser denunciados.
Mas, para além do que dizem as legislações, todo o resto é opinião pessoal e intransferível. Você ACREDITA, com base nos seus princípios éticos, morais, religiosos, familiares que é melhor assim; como pode ter tanta certeza? E, se para você é assim, por que é que deveria ser para o outro também?
Quem fez merece aprender
Em tempos como os nossos, tenho dito repetidas vezes, o que mais falta é empatia. Subimos nas nossas pedras da justiça, apontamos o dedo para o que consideramos erros alheios e queremos que o outro pague. Nem sequer nos propomos ao exercício de questioná-lo para entendê-lo.
E há algo ainda mais perigoso por detrás disso. Muitos de nós fomos ensinados, ainda pequenos, que todo erro merece ser fisicamente ou emocionalmente castigado. Ainda crianças, fomos repreendidos por nossos pais, avós e educadores com tapas, xingamentos e outros tipos de punições físicas e/ou emocionais.
O tempo passou e, porque nos tornamos “adultos de bem”, acreditamos que esse é o caminho das pedras para formar cidadãos de bem: ou seja, castigar de maneira agressiva é a forma de repreender para ensinar. Mas será que é isso mesmo que estamos fazendo? Aliás, será que é assim que funciona?
Penso que estamos nos escondendo atrás desta crença. Que estamos chamando de “lição” e de “aprendizado” o que, na verdade, não passa de vingança: porque o outro cometeu um crime contra mim, eu desejo que seja vítima de uma dor similar à minha. Eu quero que pague; que sinta na pele o que senti.
A troco de quê? O que eu ganho com o sofrimento alheio?
Retomando só um pouquinho, durante minhas pesquisas para o livro do Perdão, esbarrei em inúmeras histórias de pessoas que puderam perdoar os perpetradores dos mais atrozes crimes. Encontrei relatos de vítimas do Holocausto que perdoaram seus algozes nazistas; encontrei obras inteiras escritas por vítimas do Apartheid que, igualmente, conseguiram perdoar as mazelas a que tinham sido submetidas por este sistema.
E encontrei alguns consensos nessas histórias e relatos. Em primeiro lugar, essas pessoas não eram mais ou menos espiritualmente elevadas que você ou eu; eram pessoas comuns, que, mesmo diante da adversidade a que foram expostas, decidiram perdoar o passado.
Em segundo lugar, elas assim fizeram em benefício próprio, independentemente de seus algozes (os quais, eventualmente, foram, sim, punidos pela justiça). Na verdade, apenas pararam de desejar vingança – em outras palavras, deixaram de relembrar, remoer, ressentir o passado para, então, construir um futuro melhor.
Isso é o que o perdão faz. Perdoar, como disse antes e digo sempre, é uma questão de inteligência.
Ao contrário do que muitos imaginam, imprimir algum tipo de vingança ao perpetrador de um crime não remove e nem alivia nossas dores pelo crime em si. Segundo relatos, aliás, causa até o efeito contrário.
Toda vez que eu devolvo um tapa com outro, como disse no artigo anterior, entro no círculo vicioso da vingança.
E toda vez que entro no círculo vicioso da vingança, é a minha felicidade e o meu bem-estar que ficam comprometidos, não do outro.
Disse no livro e reitero aqui que precisamos rever nossos paradigmas de maneira que possamos dissociar vingança da punição. Em vez de “quem fez precisa pagar”, devemos adotar o “quem fez merece aprender”. E devemos fazê-lo ainda nas escolas, partindo do princípio de que o acesso à educação e à empatia é que farão um mundo melhor.
A paz que tanto buscamos só se dará pelo fim da vingança e o começo do perdão.
Até a próxima!